domingo, 30 de maio de 2010

Retorno a Inocência



Enquanto as folhas caiam desprendidas pela brisa, vi a morte ceifar-lhe a vida embaixo da velha árvore. A cadeira de rodas tombou. O corpo delicado desgarrou-se sobre folhas secas e a grama orvalhada da manhã.

Reconheço que há muito tempo ela estava doente. O calor do seu corpo agora é apenas uma benção do sol e vou contemplar por instantes nesse dia que prenuncia primavera e a saudade.

Ela não verá a renovação do nosso jardim. Por enquanto e com alguma dificuldade, vou me deitar ao seu lado. Vou olhar nos seus olhos pela última vez; fechá-los e beijar ternamente a mulher que sempre amei.

Vejo o seu rosto em paz.  Em suas mãos, as últimas palavras fracamente escritas e verdadeiras. Retiro a folha amassada de suas mãos e leio:

“Velho, levanta-te! Lembra quando éramos jovens e deitamos embaixo desta árvore pela primeira vez? Você, jovem e imaturo, prometeu que morreria antes... Lembra? Planejamos nossas vidas; fomos embora e voltamos. Descobrimos que o tempo é o dono das verdades. Deus conservou nossas vidas e o tempo nos marcou e brindou com maravilhosas experiências.  Vê? As marcas mais altas sobre a sua cabeça? As primeiras letras na árvore fizemos em um outono?  Os riscos do meio são dos nossos filhos. Os riscos mais baixos são dos nossos netos. Alguns riscos foram separados pelo tempo...  Você quer ficar triste e mergulhar em saudades? Morreria comigo? Levanta-te, velho! Ensina tua neta a andar de bicicleta! Ensina teu neto a plantar e consertar a cerca de madeira. Aprenda um pouco quando nosso filho tiver tempo para te ensinar (você já foi muito bom nisso, lembra?).  Amanhã, quando o sol bater na varanda, não senta para as velhas fotos. Vá no parque com as crianças e tire novas fotos com elas. Não fique sério debatendo política. Seja moleque com os moleques; adulto só com os adultos e velho só com os velhos. Vê? Estou em paz! Faça tudo como combinamos e, de maneira simples. Não desperdice mais suas economias comigo. Continue forte! E não se engane... aprendi a ser forte com você. O medo que tinha da morte, não tenho mais. Os olhos e a voz que tinha, não tenho mais! O que me resta de sobrevida na mão tremida dessas manhãs é este papel amassado. O que me basta no coração e no espírito é a certeza de que o nosso amor terreno foi eterno! O que me conduzirá por outro caminho? Ainda é o seu amor! Esteja feliz! Por sua companhia e a benção do universo, sou grata pela vida que tive! Sou feliz! Então levanta-te! A árvore continua com suas raízes e o único corpo morto aqui é o meu! Te amo!”


RLisboa

Assista:
Enigma - Return to Innocence
http://migre.me/Kc5a


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